sábado, 11 de dezembro de 2010

O imaginário popular e a modernidade nos sertões do Ipu (1890-1910)




RESUMO

            Apresentamos aqui uma reflexão acerca do imaginário e do choque entre os valores tradicionais e modernos na cidade de Ipu do entre séculos (1900); momento em que novos valores e idéias se afirmavam, e em as elites locais procuraram desenvolver capitais simbólicos e estratégias que as diferenciassem dos “cabras” que eram a maioria do “povo miúdo”; já por parte desta população, percebemos uma postura ousada e “atrevida” de resignificação e de adaptação aos novos tempos. 

PAPAVRAS-CHAVES
Cultura popular; imaginário; Ipu-Ceará.

             
            Como bem aponta Gilmar Arruda, em Cidades e Sertões[1], o estado-nação estava aos poucos se afirmando sobre as regiões “selvagens” e “desconhecidas”, e o século vinte aproximava-se, com promessas de progresso e de desenvolvimento; os “sertões” do Ceará apareciam perante as autoridades federais e mesmo estaduais como um local a ser conquistado pela “civilização” urbana nascente e pelas relações capitalistas modernas. O saber técnico-científico e a engenharia se propunham “civilizar” os vastos territórios “desconhecidos” e “selvagens” da província (depois Estado) através da imposição de todo um conjunto de representações culturais modernas e da interdição direta no espaço físico que legitimariam a “conquista” da “civilização” e do “progresso” sobre as regiões “bárbaras” do Ceará setentrional. Nada poderia consubstanciar mais a invasão da modernidade aos sertões do Ceará do que a instalação da Estrada de Ferro de Sobral, iniciada durante a seca de 1877-79 e arrastando-se até o ano de 1894, quando foi construída a estação ferroviária do Ipu e os monstros de ferro conseguiram atingir a Ibiapaba.   
Para a maioria das populações do norte do estado (e do Ipu em particular), o trem de ferro era um “monstro fabuloso”: “malassombre do outro mundo”, “Cão saído do inferno”, “mula-sem-cabeça”, “lobisomem em lua cheia”, “assombração de encruzilhada”; qualquer coisa entre o celestial e o profano; entre o divino e o maldito! “-Como é possível que este ‘animal mal-assombrado’ percorra aos guinchos em poucas horas a distancia entre Ipu e Camocim, se um cavaleiro, em veloz montaria, leva três dias e três noites para fazê-lo? Como, meu Deus do Céu, isto é possível?” Pensavam os matutos amedrontados diante a materialização da modernidade na forma de uma serpente gigante, que corria em trilhos comendo lenha e cuspindo fumaça entre as areias brancas de Camocim e os acidentados e “malassombrados” desfiladeiros da serra da Ibiapaba. 
A modernidade vinha suave como o vento, mas implacável como uma “tsunami”, rasgando os tabuleiros, comendo matas, cortando montes; inspirando os espíritos mais cultos e os mais supersticiosos (era “o sinal dos tempos”, o “fim do mundo!”), no fim do trabalho cativo; no desprestígio dos coronéis da Guarda Nacional; nas idéias “subversivas” da república nascente. Os valores tradicionais (a fé popular, o poder político da Igreja, os costumes, os hábitos etc. estavam em processo de fragmentação, graças ao avanço do universo de práticas e valores modernos). Inescapável como a morte, a modernidade estava em tudo sem estar particularmente em nada! Era “o espírito de uma época”! Como lutar contra “o espírito do tampo”? A modernidade era uma “onda invisível”, percebida por todos, mas sem ser notada diretamente por ninguém! Todos que viveram naquele momento sentiam a angústia do “fim do século” (muitos acreditaram que era do “fim do mundo”) e perceberam que aqueles eram tempos fatais, em que o universo tradicional estava em “degelo”, e o futuro era assombroso, apocalíptico e/ou maravilhoso. A modernidade, na “nova moda parisiense”, na nova forma de governo republicana, na mercantilização da vida, ma consubstanciação de um aparelho de estado moderno e mais “descolado” da influência do poder privado das parentelas tradicionais etc. era uma ameaça “invisível”, mas real e presente sentida por todos.  O ciclone da modernidade a tudo e a todos arrastava para o seu núcleo “civilizador” inescapável: o Estado, o governo, a Igreja, a família, as instituições, as tradições, os hábitos e costumes, os espaços públicos e privados, as formas de se pensar e sentir etc., nada escapava da avalanche modernizadora do novo século.
Na Ipu do entre séculos, os homens de saber livresco e os homens de saber folclórico sentiam o “peso do tempo” numa angústia em que os “novos ares da modernidade” diluíam valores, status, identidades, hierarquias, etc., arrastando a tudo e a todos para a “vala-comum” dos tempos modernos[2]! A velha Guarda Nacional perdia sentido e importância numa república impersonalista em que os velhos coronéis e seus parentes aos poucos iam perdendo a influência e a capacidade de monopolizar os postos de poder e de prestígio do estado; cada vez mais era preciso se submeter a “vontade popular”, arregimentar votos e eleitores; para ser cidadão (votar e ser votado) bastaria saber ler e escrever; independentemente da posição social do eleitor, igualando pobres e ricos; isso era altamente “subversivo” e “revolucionário” para o Brasil daqueles tempos; algo “perigoso”, que carecia de ser “controlado” e “manipulado” (o controle e a manipulação das eleições será a pensada e orquestrada pela República Velha como uma estratégia fundamental para preservação do poder nas mãos das elites rurais oligárquicas tradicionais).
Para Antonio Campelo Veado[3] (“profeta” popular na Ipu do entre séculos), ou para Herculano José Rodrigues[4] (poeta e literato refinado, articulador do Almanak Ipuense de 1900), havia algo errado com o mundo! Deus estava sendo posto de lado pela ciência (a Igreja perdera poder político e prestígio social, pois fora desmembrada do Estado na república); e o homem, “querendo ser Deus”, violava “os desígnios divinos”, dessacralizando um universo até então compreendido a partir da interdição direta de Deus e do Diabo no cotidiano das pessoas (se alguém adoecia, era “castigo de Deus”, se outro alguém cometia algum “pecado”, era “tentação do Diabo”; nos novos tempos, a doença e os “desdizes pessoais” serão entendidos como algo próprio do sujeito; algo “descolado” do universo mágico da religião tradicional[5]). Com as descobertas e divulgações da ciência, não havia lugar na mecânica de Newton para seres fantásticos: santos, assombrações, amortalhados, lobisomens, mulas-sem-cabeça, tentações do Cão etc., não cabiam no universo newtoniano moderno! É claro que esta “luta simbólica” entre as duas concepções de mundo se arrastará por todo o século vinte, e “ecos” dela ainda se fazem presentes em nossa realidade atual.
Aqueles eram tempos férteis para o imaginário popular; mas também tempos em que tal imaginário passou a sofrer o ataque frontal dos saberes e dos poderes “modernizadores” e “civilizadores” radicados no universo urbano dos grandes centros: nos sertões da Bahia tinha se findado a Guerra contra Canudos (1896-97) após o massacre da comunidade fundada pelo beato Antônio Conselheiro; no Cariri ocorrera o “milagre do Juazeiro” (a hóstia se transformando em sangue na boca da beata Maria de Araújo, em1889, por ocasião da comunhão dada a ela pelo Padre Cícero[6]); e no Ipu, Antônio Campelo Veado fundara a Legião da Cruz: 


O que foi essa Legião da Cruz [...] sabe-o todo o Ipu, conhece-o todo o habitante da região nortista do Estado... Quaes os seus fins, a sua acção inerte prejudicial, o nullo resultado que a despresivel associação demonstrou nos largos dias de sua duração [...] no afan condenável de sua congregação, ao envez de cooperar com os esforços reconhecidos de seus sectários para que no povoado de sua reunião se pregasse uma doutrina sã, moralisadora, contibuindo assim para que a civilização avançasse nos incultos sertões, abrindo aos olhos dos seus ignorantes congregados o caminho do Bem. ensinando-lhe a elevar o nome da Pátria, desenvolvendo as artes, a sciencia, a industria, a agricultura, [...] ; ao envez de lhes ensinar a amar o seu Deus, doutrinando as theorias do Diovino Mestre, ao contrario, tudo fazia em beneficio próprio, e, ao que parece, animava os seus irmãos em idéias á praticas de actos reprováveis, insultando-os até a attentarem contra a vida de seus semelhantes, em preparo, talvez de lutas fratricidas...[7]



A seu modo, a Igreja envolvia-se na luta pela preservação de seu status com ataques aos “desvios” do catolicismo popular; era a “romanização”; no Ipu, além dos choques com a associação “marginal” fundada por Veado, a romanização aparece num incremento das festas do padroeiro e na criação de associações de caridade que congregavam famílias faustas e remediadas de proprietários e comerciantes na estratégia de “amparar” e “socorrer” aos pobres e “desvalidos da Fortuna”, visando provavelmente apaziguar o potencial explosivo das “classes perigosas”:


... [a] sociedade de São Vicente de Paulo (...) Superintendidas pelo Conselho Superior de Paris [...]. E’ formado o Conselho pelas conferencias de São Sebastião, fundada em 1905, [...]; São Gonçalo fundada em [...] 1907; Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, fundada em [...] 1917 e Nossa Senhora do Desterro, fundada em [...] 1922. [8]


O catolicismo oficial, representado pela encarnação o mito de São Sebastião, tem no novenário o seu auge:


A festa de S. Sebastião da freguesia do Ipú tem qualquer coisa de encanto, de harmonioso conjucto, no sentimento religioso de seu povo, «crente por índole, fatalista por vezes e supersticioso quasi sempre», reunido-se em determinado dia do anno (de 10 há 20 de janeiro), para render graças ao divino padroeiro da localidade. [9]


O país estava sendo devassado pela república e pela modernidade; as práticas populares (fé, hábitos, costumes, habitações etc.) estavam sendo duramente reprimidas e criminalizadas pela máquina de governo para que pudessem dar lugar a uma nação e a um povo “civilizado” e “progressista”; era preciso conhecer, submeter e reeducar aos “bárbaros” e rudes moradores dos sertões – negros, índios aculturados, caboclos etc. - para que a “civilização” lograsse “êxito” sobre a “barbárie” de um universo rural ainda por ser “desbravado”. A ferrovia oportunizaria o disciplinamento de espaços, corpos e hábitos na mediada em que as relações capitalista, com a abertura de estradas, consolidação da autoridade central etc. se fizesse impor aos caboclos “selvagens” e as elites “brutas” e “incultas” desta vasta área. Tal qual o “Dragão fantástico do Apocalipse”, a locomotiva invadia a imaginação fértil destas populações marginais ao “progresso nacional”, como que a assombrá-las como um “espantalho fabuloso” a serviço do “progresso” e do avanço da “civilização moderna”.   
Na Ipu aludida, a fé na figura mítica de São Sebastião congregava os habitantes do lugar em torno de uma identidade coletiva construída e manipulada pela Igreja católica e pelas elites para a cidade e para a sua gente simples. Esta identidade tinha na figura do santo um verdadeiro “mito de origem”: era em torno de São Sebastião e de sua Igreja que gravitavam os sentidos, as tradições e os pertencimentos dos ipuenses ali congregados. Ambos, Igreja e elites, sabiam manipular em beneficio próprio o fabuloso capital simbólico representado pela figura do santo católico medieval herdado das representações culturais ibéricas trazidas para o Brasil com a imigração portuguesa ainda no período colonial. Nos dias que se sucediam as festas do padroeiro, uma verdadeira multidão de fiéis se acotovelava nas estreitas e tortuosas ruas do “Quadro da Matriz”; era gente vinda da cidade, de seus distritos, assim como de distantes e longínquas povoações, vilas, fazendas e cidades de toda a região, perdidos em meio às trilhas e estradas coloniais e precárias de um sertão quase impenetrável ao “homem civilizado” do universo urbano; tinha pessoas vindas de Tamboril, de Campo Grande, de Ipueiras, da Jaçanã, de Sobral e de muitos outros lugares; as festas tradicionais no Ipu era um acontecimento raro e “imperdível” naqueles sertões. Na missa, alguns homens “de posição” vestiam a farda garbosa da Guarda Nacional, ou chapéus da “ultima moda” para ostentar prestígio e poder; algumas mulheres, se “bem-nascidas”, vestiam roupas “de gala”, sinalizando que estavam prontas para casar, se solteiras, ou que eram “recatadas donas de casa”, se casadas. Já os pobres, pelas vestes se viam a posição que ocupavam naquela sociedade tão hierarquizada: roupas fiadas à mão por eles próprios, mal-feitas, mal costuradas e mal estampadas, mas elegantes para aquela ocasião; chapéus de couro, pés descalço, peixeira “no quarto”, se vaqueiro, ou se “cabra” de algum coronel; rosário nas mãos na hora do terço etc. Um andor com a imagem do Santo trespassado por setas assassinas (uma no peito, uma na coxa, e outra no abdômen) era carregado por braços devotos e piedosos ao coro estridente de vozes que pareciam saídas de longínquas regiões do além:


O’ martyr de Christo,
O’ santo varão,
Livrai-nos da peste,
São Sebastião.[10]


Deixando o pátio da Matriz após a celebração das missas, o andor era carregado para as casas das principais autoridades do lugar com o sol já se escondendo por detrás da montanha no poente: cabia ao boticário e pecuarista Thomaz Corrêa (herdeiro bastardo do famigerado padre Corrêa), ao intendente João Bessa Guimarães, a seu cunhado, o juiz Felix Candido de Sousa Carvalho, ao presidente da câmara municipal, vereador Antônio de Sousa Aragão, ao comerciante José Lourenço de Araújo, ao coronel Porfírio José de Sousa (pai do juiz Felix, e sogro do intendente Bessa) e muitos outros “homens de posição” a “honra” de receber em suas residências à imagem do “Marty Santo”; a maioria destes homens (a única exceção seria para José Araújo e Thomaz Corrêa) compunha a parentela dos “Sousa-Carvalho”, que caindo nas graças da oligarquia Acciolina, manipulará para si os melhores postos da máquina pública e do aparelho de estado da cidade até a queda do “babaquara” em 1912. Ver o andaime do padroeiro da cidade adentrar, uma a uma, as casas das mais influentes pessoas do lugar tinha, como não podia deixar de ser, um incrível poder simbólico: era como se dissesse com isso que a oligarquia de Bessa, Porfírio, Antônio de Sousa, Feliz Candido e “companhia” contavam com as “bênçãos de Deus” através de sua Igreja na gestão dos “negócios públicos” da cidade.
Somando-se aos preconceitos herdados do cientificismo e do eurocentrismo, à romanização promovida pela igreja católica local, que via “subversão” e fanatismo no catolicismo popular de Antônio Veado, e um esforço exagerado de “passar o Brasil” a limpo promovido por parte das elites dirigentes radicadas no centro-sul, corroboraram para agravar o clima de incertezas e a angústia de “fim de século” para os moradores da Ipu daquele período. Aos olhos dos agentes do governo nacional os enclaves de “barbarismo” e de “atraso” de um Brasil sertanejo “ante-moderno” representado por regiões como a de Ipu e Sobral, era uma “nódoa” a ser removida de nosso mapa, e a ser arrastada “na marra” para a “civilização redentora”. A cidade conheceu no entre séculos uma verdadeira guerra entre signos, representações e símbolos em que o popular e o “oficial” travavam feroz batalha pelos corações e mentes de seus habitantes. No “olho do furacão”, a Legião da Cruz de Antônio Veado despertou o ódio da Igreja e das autoridades por encarnar tudo que representava de “atraso”, “ignorância” e arcaico nas tradições e nos costumes populares. Sobre a congregação de Veado,       


Assim constituida, repercutiu a sua fama na zona, o seu prestígio cresceu dia a dia num evoluir espantoso, e em pouco tempo accusava o seu livro de registro de inscripções uma quantidade infinita de adeptos os mais fervorosos e intransigentes. todos certos dos fins salutares e sagrados de sua congregação, máo grado a desapprovação de determinada parte do povo de espírito mais culto e por índole indifferente ás idéias errôneas do fanatismo desabusado que então predominava naquellas paragens, felizmente, em tempo julgado pelo poderio da moralidade da lei e do direito.[11]   


Pegando emprestada uma terminologia extraída dos conceitos de imaginário popular de Roger Chartier[12], de Michel Maffesoli[13], e do conceito de capital simbólico de Pierre Burdieu[14], podemos dizer sem medo de errar que a cidade de Ipu do entre séculos assistia uma verdadeira batalha cultural (simbólica) pelo controle e manipulação do imaginário representado pelas crenças e tradições religiosas e populares. Quem controlava o símbolo (São Sebastião era um símbolo identitário e de pertencimento) controlava o “povo ignaro” que nele depositava sua fé; e foi por isso que a figura de Antonio Veado, um “fanatizador das mentes ignaras”, veio incomodar tanto naquele momento; Veado vinha na contra mão do processo de “civilização” movido em parceria pelos governos (do Ceará e do Brasil), pelas elites locais e estaduais e pela Igreja católica romanizada e carregada de preconceitos contra a fé popular. Este processo procurava “esterilizar” a fé popular de crenças e tradições tidas como “bárbaras” e “perigosas”; o catolicismo popular, o folclórico, a fé ingênua, os costumes e os hábitos da população sertaneja agora serão encarados como “desvios”, “barbarismos” ou mesmo “heresia” de uma população “ignorante” por governos e instituições sedentas de “modernizar” e atualizar o Brasil.     


Dois annos após a formação desse pernicioso núcleo, contando um sem numero de reuniões desaproveitaveis, tendo como responsáveis pessoas «menos favorecidas de cultura intellectual, por isso mesmo menos culpadas da anarchia mental que lavra na sociedade brasileira», chegou ao conhecimento das autoridades do termo do Ipú que os chefes da já celebrisada associação armavam pessoas – naturalmente os s3us apaniguados – com o fim de assassinar o respeitavel cavalheiro coronel antonio Nogueira Borges e em seguida incendiar-lhe a casa de residência, unicamente pelo simples facto de aconselhar aquelle senhor ao povo a abandonar a falsa irmandade...[15]



O imaginário popular enfrentava o degelo provocado pela modernidade; ocasião em que a laicização do estado, o desprestígio da Igreja, o desencantamento do mundo (a ciência estava afugentado as explicações mágicas para a realidade mundana) provocava na maioria das pessoas que viveram na Ipu do entre séculos um forte sentimento de violação dos sacramentos deixados “por Deus” para reger uma humanidade pecadora que caminha para a heresia e para o pecado.
            Citemos, pois, mais alguns “causos” do imaginário local deste período:

A capela (da Matriz) conservou-se até o ano de 1871; [...] Corria que na praça em frente desse templo (bem no local do Cruzeiro) havia um tesouro enterrado por um holandês, que o colocara sob a proteção do Santo. [...] fôra trazido (tal tesouro) da gruta do Donato [...] (e) ainda existem grandes riquezas guardadas por uma serpente de olhos de fogo; mas que [...] só se pode ali penetrar quando o feroz animal está com os olhos fechados...[16]

            Um outro mito, bastante interessante, diz respeito à figura de Porfírio José de Sousa, patriarca dos Sousa-Carvalho, oligarca que ao lado e seu genro João Bessa Guimarães, monopolizara o posto de intendente municipal durante o período em que governou o Ceará Antonio Pinto nogueira Accioly (1896-1912); podemos dizer que os Sousa-Carvalho eram os tentáculos do acciolismo no Ipu. Diz a “lenda” que a mãe de Porfírio, após anos de seu sepultamento, transformara-se numa “serpente encantada”, animal “mal-assombrado” e fantástico que povoava o imaginário dos ipuenses dede então, e que vem ilustrar o modo como a população pobre da cidade re-significava papéis, e fazia uso de um rico imaginário social para “julgar” e condenar” as ações dos poderosos que não cumpriam muito bem o importante papel de “bons compadres protetores de pobres e desvalidos” herdado do paternalismo e do compadrio tradicionais; tal lenda fora tão forte na imaginação popular que mesmo hoje em 2010, no momento em que escrevo este artigo, é possível identificar resquícios deste mito na memória coletiva local:

Quando eu vim da minha terra
Descambando a Macambira,
Me falaram de uma cobra
Que era avó do seu Prófirio.

Então-se eu fui até lá
E via a cobra engaiolada
Me informei no povoado
O tanto que essa velha era malvada

O nome dela era Malvina
Ela tinha uma fazenda
E muitos negros cativos
Judiava com os coitados
Tanto que ela podia
[...]
Todo mundo lhe temia
Era o pavor do lugar
Até que um dia Malvina
Escama começou a criar
E os nego apavorado
-Que está acontecendo?
-O que ela quer virar?

Um dia encontraram ela
Virando cobra num lugar
Então todos ficaram apavorados
E se puseram a gritar [...].[17]

            O imaginário social da população do Ipu no final do século dezenove e início do século vinte era extremamente fértil, povoado por serpentes encantadas, Santos curadores, tesouros mal-assombrados, lobisomens, almas penadas, tentações do “Cão” e muitas outras crendices e superstições que podem revelar aspectos peculiares do “estado de espírito” e da cultura da população que viveu naquele momento. Mesmo sem ser parte do rol de “cidadãos” com direitos políticos reconhecidos (na ocasião, a república estendera o direito de voto a todos os cidadãos alfabetizados, mas a medida, na verdade, teve efeito nulo em uma cidade em que mais de 90% de sua população era analfabeta[18]), a maior parte desta população possuía uma postura ativa e desafiada frente ao avanço de uma modernidade dessacralizadora. Como pudemos atestar na fé em torno de Veado e sua Legião da Cruz, e a ácida resignificação da mãe do intendente Porfio, que perante o imaginário popular virara serpente, (uma encarnação da maldade e da vilania) vêm ilustrar uma postura bastante ativa para uma população tomada como “inerte” e “pouco participativa” perante a história tradicional. Se entendermos a política pela visão de René Rémond, “O político também comporta estruturas que lhe são próprias” e que o político “guarda relações com o resto, com as demais expressões da atividade humana e com a sociedade civil[19].
            Tradicionalmente só entendemos política como sendo a “política partidária”, (daí a idéia de que o povo é “apolítico” e “indiferente” a seu próprio destino), não vemos a pressão das populações caboclas e pobres em geral como parte de uma “estratégia política” em que práticas e representações culturais são redesenhadas no sentido de dar legitimidade aos grupos populares para “em nome da sujeição” e da “lealdade” aos seus “compadres” reinventar as regras do paternalismo e do compadrio em beneficio dos pobres e dos socialmente fragilizados e em detrimento das elites dominantes. E. P. Thompson[20] demonstra cabalmente como, na Inglaterra do século dezoito, os pobres pressionavam aos ricos pela preservação de relações paternalistas anteriores aos valores capitalistas modernos (o que ele chama de “economia moral”, posta em movimento pelos pobres para se sobrepor ao avança da economia de mercado). Se pudermos “pegar emprestado” deste grande historiador marxista a percepção da cultura popular como algo carregado de focos de resistência às mudanças do seu universo sócio-cultural, podemos mesmo nos arriscar a dizer que a postura de personagens como Antonio Veado, ou a “mãe-serpente” do intendente Porfírio, revelam facetas ativas e  “atrevidas” da cultura e do imaginário popular de então frente a “dominação” das elites oligárquicas. O povo não assistiu passivo ao desmoronamento de seu mundo; reinventou estratégias e valores simbólicos em que o imaginário social popular procurava re-elaborar o conjunto de signos e de símbolos recebidos pelo avanço da modernidade com suas novas relações de poder e novas hierarquias. E se é verdade que no entre séculos estas populações caboclas experimentaram um “degelo” intenso de suas tradições e costumes acarretado pelo avanço da modernidade e do progresso técnico e científico, também o é que tais populações não ficaram inertes, como “vítimas passivas” do progresso e de uma “modernidade-avalanche”; mas traçaram uma gama significativa de resistências e de re-significações para “enfrentar” e re-significaras forças da modernidade avassaladora.
            Nada ilustraria melhor uma postura “ativa” para a população e para a sua cultura do que quando em 1905, os proprietários das terras por onde corriam as águas do riacho Ipuçada, que a abastecia a população urbana da cidade, decidiram construir barragens para “monopolizar” o uso deste precioso líquido; até então a água era coletiva, e represá-la foi considerado “um crime” pelos costumes tradicionais: “alguem [...] criminosamente, desviara o curso do riacho, na serra, num egoismo descomunal, desejoso unicamente de beneficiar a sua propriedade”; tal gesto motivou atitudes e ações por parte da população:  “Comícios e reuniões populares foram negociadas [...]. Uma sociedade popular contra a sêde foi até constituida, nada demovendo o proposito criminoso dos poderosos proprietários”. Até que

Um dia, quando menos se esperava, numeroso grupo, tendo á frente decidido rapaz [...] embrenha-se pelos reconditos da serra, segue o curso do riacho até ás suas nascenças e onde o obstaculo surge em um momento desapparece á força de poderosos braços, sequiciosos de sêde e de uma justiça que faltava. [21]      

             A imaginação popular ainda fez circular de boca em boca estes versos “indecorosos”:

O povo do velho Ipú
Perde de todo o socêgo,
Se o Carneiro tapa o cano
E o Maneco abre o rego. [...]

Vamos todos, minha gente,
Acabar e bem ligeiro
Com o rêgo do Maneco
E o cano do Carneiro.

Elles querem nos tomar
A agua, que Deus nos deu:
O’ que cano tão cruel!...
O’ que rêgo tão judeu!... [22]

            Repare a alta ironia, mesmo “sexual” e depreciativa, no “rêgo” de Maneco e o “cano” de Carneiro. Não fica claro no texto quem seriam estas personalidades; mas podemos afirmar, sem qualquer sombra de dúvida, que eram pessoas oriundas das fileiras das mais influentes parentelas da cidade (gente de “família”, diria um observador atento, pois possuir terras nas nascentes do riacho Ipuçaba sempre fora privilégio de poucos), e é notável o modo como a cultura popular, além de sancionar ações contra as elites locais, possuía uma criatividade e um humor mordaz e “atrevido”; segundo a concepção de René Rémond, isto é “fazer política”.
            Com o “enquadramento” das manifestações das culturas populares na categoria de “fanatismo”, “heresia”, ou “ignorância” por parte de forças nacionais, as elites locais travaram estratégias articuladas no sentido de se distinguirem destas populações caboclas “supersticiosas” e “crendeiras”; era preciso se “civilizar” a todo custo para se distinguir; mostrar a todos e a si mesmo que os filhos e filhas das famílias “ilustradas” da sociedade local se diferenciavam dos “tabaréus bárbaros” dos sertões que o país inteiro identificava como a causa maior do “atraso” da nação.
            A confecção de jornais efêmeros, a articulação do Gabinete Ipuense de Leitura (1896), a criação de um lócus privilegiado para o “cultivo” das letras espelhados nos moldes da “França civilizada” e “moderna” revela parte destas estratégias e construção de um novo capital simbólico para estas elites:

 Foi esta imprensa aqui representada em diferentes phases: primeiramente foi o Sol, tendo como redactor Thomaz Correia e Feliz Candido e Manoel Marinho, seguindo-se-lhe A Brisa, ainda da responsabilidade de Thomaz Correia, Feliz Candido e José Candido; O Espelho, de Eduardo Saboya, actualmente deputado ao Congresso Federal, órgão da sociedade litteraria Paladinos do progresso, de Julio Cícero monteiro, Feliz Porfírio de Sousa, Herculano José Rodrigues e Manoel Coelho.[23]


Ou ainda podemos apontar para ilustrar melhor a “modernização” de práticas “anti-modernas” feitas pelas elites e pelos populares (pois as fronteiras entre o popular e a cultura “de elite” são porosas e permeáveis) mostram que estas elites souberam “seqüestrar a modernidade”, de tal modo que esta pudesse tolerar e conviver com hierarquias e tradições arcaicas herdadas do universo social anterior. Neste ponto, a criação do Gabinete Ipuense de Leitura vem ilustrar cabalmente uma dessas estratégias:

...Thomaz Correia e [...] Feliz Candido [...] em 1886 – (fundaram uma nova) aggremiação – esta exclusivamente de lettrados – o Gabinete Ipuense de Leitura, figurando mais, além dáquelles dois fundadores, o padre João José de Castro, vigário da parochia e seu primeiro presidente, o major Antonio Francisco de Paula Quixadá, o então acadêmico Francisco Ximenes Aragão e José Candido de Sousa Carvalho.[24]


            É bastante ilustrativo que todos estes nomes são de pessoas ligadas ora a Igreja (é o caso o padre e do coronel Thomaz Correia[25]), ora a Guarda Nacional, ora a aos grupos ocupantes de postos partidários na máquina oligárquica estadual-local (como Feliz Cândido, nomeado “estrategicamente” por Accioly para o posto de juiz municipal ao mesmo tempo em que o pai e o cunhado monopolizavam a intendência, e do major Quixadá, velho coronel-vereador pertencente a câmara local desde a metade do século dezenove); o que faz do Gabinete muito mais do que uma agremiação literária “moderna” em “sintonia” com os modismos pedantes da capital, mas um lócus para a produção do poder político e para a reprodução do status quo; era ali que as elites procuravam se “lavar” das suas pejas de “arcaicas”, “bárbaras” e “ignorantes”, para se travestirem da carapaça de “modernas”, “civilizadas” e “cultas”; era também ali que estas elites, seqüestrando para si o “sentido da modernidade”, embarcaram “incógnitas” na “nau-capitania” dos novos tempos e trouxeram para dentro da república impúbere os vícios do estado paternalista e patrimonialista herdado do universo monárquico. 
            Estes grupos privilegiados dividiam o espaço público da cidade com a população “ignorante” muito a contra gosto; à medida que o século vinte nascia, as elites locais criaram lócus e fronteiras de distinção social em que o pobre não podia penetrar sem intensa vigilância, controle ou sob pesadas regras de moral e de higiene modernas; as ruas, os hábitos e os corpos foram submetidos a um duro e lento processo de disciplinamento; por volta de 1910 os jumentos foram proibidos nas ruas centrais, um cabaré fora criado para “moralizar” as “mulheres de vida fácil”, as ruas da cidade foram esquadrilhadas no formato “linha-reta”, e o cemitério fora banido do terreno acidentado e próximo do mercado público. Saber escrever e contar tornou-se um capital simbólico avassalador numa república em que isto era a condição para a cidadania e para o exercício do direito do voto; e não é verdade, por mais que sejamos levados a crer, que o “povo miúdo” não valorizava um saber livresco e oral fundamentado nas leituras coletivas em voz alta, e nos versos soltos dos repentes populares (isto é discutido por Roger Chartieu em seu clássico A história Cultural[26]); e embora “influenciados” pela literatura romântica de origem francesa, nomes como Abílio Martins, Herculano José Rodrigues e outros deixavam o terreno pedante e imitativo dos sonetos em estilo “Bellepoquense” para se enveredarem pelo universo das práticas da oralidade, do imaginário e da poética popular. O popular e o “erudito” se “contaminavam” mutuamente, como postula Carlo Gisburg em seu “paradigma indiciário”[27]; gerando neles uma originalidade pudica das quais os próprios autores procuravam furtar-se (era “vergonhoso” ser popular!). Neste momento há evidências que apontam para uma grande circulação de livretos de literatura de cordel, onde temas ligados ao universo mágico e divino da fé pululavam ao lado de temas herdados das tradições ibéricas do imaginário fantástico medieval (daí os versos a cerca da “mulher que virara cobra”, da “serpente de olhos de fogo” descrita por Antonio Bezerra etc.).  
            Para se distinguir do povaréu precário, era preciso adquirir cultura letrada a qualquer custo; como também distanciar-se dos “velhos coronéis analfabetos e de seus cabras ignorantes”; deixar o passado pra trás; criar novas distinções sociais que pudessem fornecer um novo acervo de capitais simbólicos e reforçar as velhas hierarquias sociais ameaçadas pela erosão da modernidade (as patentes da Guarda Nacional, o exercício de um poder político extra-oficial e informal, a ocupação de postos e cargos públicos sem a necessidade de grande saber técnico etc., estavam todos sobre um intenso processo de degradação e de enfraquecimento perante o avanço de novos signos, novas representações de poder, novas hierarquias e novos capitais políticos). Dentro do rol de estratégias desenvolvidas para este fim, a criminalização da fé popular, e a construção de um capital social simbólico que veio “modernizar” aos filhos das velhas elites rurais locais ilustram bem as lutas e as estratégias em que uma luta pelo controle do sentido do signo, das distinções e dos símbolos de modernidade foram travados.           


Raimundo Alves de Araújo
Mestrado Acadêmico em História – MAHIS - UECE. 2010.




[1]  ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões: entre a história e a memória / Gilmar Arruda,-- Bauru, SP: EDUSC, 2000. (coleção história).
[2] BERMAN, Marshall; tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade; tradução Carlos Felipe Moises, Ana Maria L. Ioriatti. – São Paulo: Companhia das letras, 2007. Para este autor, a modernidade era altamente contraditória e angustiante.
[3] SOUZA, Eusebio de; Um pouco de História. Revista do Instituto Histórico do Ceará; Fortaleza, t. XXX, 1916.
[4] Almanak Ipuense de 1900; pela leitura tenta desta publicação, podemos supor que Herculano José Rodrigues era um de seus principais articuladores, e que o mesmo fizera oposição a oligarquia local dos Sousa-Carvalho.
[5] TOURAINE,Alan; Crítica da Modernidade; tradução Elia Ferreira Edel. –Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
[6] FARIAS, José Airton de; História do Ceará; Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2007. 2ª Edição. Cap. 19.
[7] SOUZA, Eusebio de; Um pouco de História (continuação). Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, t. XXX, pp. 248-278-1916. p. 249. (como no original).
[8] Sousa, Eusébio de. Revista dos Municípios; ano I; n. I; fevereiro de 1929; p. 40. (como no original)
[9] SOUZA, Eusebio de; Um pouco de História.; op. cit. p. 256.
[10] SOUSA, Eusébio de; Idem; p. 259.
[11] SOUSA, Eusébio de Idem; p. 250.
[12] Chartier, Roger; A história cultural: entre práticas e representações; tradução de Maria Manuela Galhardo; 2ª ed. Ed. DIFEL; Lisboa, 2002.
[13] Revista FAMCOS; porto alegre; nº 15; agosto de 2001; quadrimestral; pp. 74-82.
[14] BOURDIEU, Pierre; O poder Simbólico; tradução Fernado Tomaz (português de Portugal) – 9ª ed. – Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2006.
[15] SOUSA, Eusebio de; Revista do instituto histórico do Ceará. Op. cit. p. 251. (como no original).
[16] MENESES, Antonio Bezerra de. Notas de Viagem. Imprensa Universitária do Ceará; Fortaleza; 1965; p. 204.
[17] Entrevista feita por mim à senhora Francisca Ivanira Paz de Oliveira (nascida em 26 de agosto  de 1936); em 22 de setembro de 2009; a entrevistada conta que estes versos lhe foram ensinados por sua família, quando ela ainda era criança. É muito interessante notarmos que, dada a “volatilidade do imaginário”, em muitos outros relatos é a avó, e não a mãe, do Intendente que aparece “virando serpente”; mas o mais importante é que fora este grupo que fora “vitima” deste conteúdo imagético-popular.
[18] FARIAS FILHO, Antonio Vitorino; O discurso dói progresso e o desejo por uma outra cidade: imposição e conflito em Ipu (1894-1930); tese de mestrado; MAHIS; Fortaleza, 2009; p. 57. (texto sujeito a aliterações do autor).
[19] Por uma história política; René Rémond; Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994; p. 9.
[20] THOMPSON, E. P. Costumes em comum; revisão técnica Antônio Negro, Cristina Meneguelle, Paulo Fontes. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 
[21] SOUSA, Eusebio de; Revista do instituto histórico do Ceará. Op. cit. p. 268 e 269. (como no original).
[22] SOUSA, Eusebio de; Revista do instituto histórico do Ceará. Op. cit. p. 270. (como no original).
[23] SOUSA, Eusebio de; Revista do instituto histórico do Ceará. Op. cit. p. 227.
[24] SOUSA, Eusebio de; Revista do instituto histórico do Ceará. Op. cit. p. 223.
[25] Thomaz Correia era filho do padre Correia, antigo líder liberal local, vitima de preconceito, o coronel-literato e boticário teve a sua “origem desonesta” ocultada por si mesmo e por seus familiares; e tal personagem sempre esteve diretamente ligado as ações de “romanização” da Igreja local.
[26] CHARTIEU; op. cit; cap. IV; V, e VI.
[27] GINSBURG, Carlo; Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história; tradução Federico Carotti. – São Paulo: Companhia das Letras, 1989; pp. 143-180.

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